- Quieto aí, bota as mãos pro alto!
- O que tá acontecendo?
- Bota as mãos pro alto, cara!
- Tudo bem, mas qual é o problema?!!
- Qual é a sua parada aqui?
- Vim conversar com um amigo meu, o Saulo, dono desse quiosque...
- Tá com algum documento?
- Tô com a minha identidade e a minha carteira de professor.
- Pega bem devagar os documentos e passa pra ele.
- Ok.
- O que tá havendo aqui, gente?
- Você trabalha nesse quiosque?
- Sou o dono dele. Esse é o Caio, ele é meu amigo e veio aqui comigo pra pegar um ingresso prum show que vai rolar hoje na cidade.
- Então vocês se conhecem?
- Conheço, ele é meu amigo, professor e tal...
- Tudo certo com os documentos dele? Ele tá limpo? Alguma arma?
- Tudo certo, é outro cara, não é ele.
- O que aconteceu?
- O senhor nos desculpe, mas alguém com a sua descrição tá sendo procurado por assalto. Assim com essa sua roupa mesmo.
- O senhor nos desculpe, foi um engano. Um bom dia pro senhor.
- Tudo bem...
Assim começou o “meu” show do Planet Hemp, levando uma dura na Praia do Morro quando buscava um ingresso de cortesia que me foi prometido por Saulinho, então dono do quiosque Academia da Praia, o point da rapaziada roqueira na depressão pós-Laricão. Exato, confundido com um vagabundo por estar de calças jeans, tênis e camisa havaiana sob um sol de rachar. Reconheço, estava a parecer mesmo um malandro dos bons. O convite tava custando 20 pratas, uma boa grana naquele tempo, e um valor que, poupado, renderia as cervejas do evento. Com a parada garantida nas mãos, restava a espera ressacada de um resto de tarde até a partida rumo ao local escolhido, as Três Praias, então um espaço aberto aos shows, quase paradisíaco, perfeito pelo clima e nada perfeito pela estrutura. E, pra sacar melhor o significado de toda a questão, vale ressaltar novamente o pesado impacto que a bolachinha de cânhamo causou na e entre a turma Guarapa-brazuca: cinco caras jogando nas caras o consumo libertário/visionário/temeroso de uma erva e da ideologia em seu entorno. E eles estavam ali, em um verão, ao alcance de uma pequena corrida de carro. Dava pra sentir na pele e na cabeça a onda de agitação que precedia a sua apresentação, algo como se a revolução, qualquer uma, estivesse ali, esperando uma sacudida nos ossos pra arrebentar o muro. Era novo, excitante, perigoso e único. E estava rolando naquela hora, conosco e por nossos próprios recursos. Não dava pra dizer não.
Agora, acreditem: a única viatura policial que esteve no epicentro do caos bateu em retirada envergonhada, não por medo e não por resistência física, mas por uma facilmente constatável incapacidade de reprimir qualquer que fosse o comportamento de consumo de drogas ilícitas naquelas areias e naquele matagal. Era dada a senha pra que o latente e por vezes nem tão latente “botar a erva e que tais pra dentro” atingisse em pouco tempo o status de ato banal.
Um catastrófico – no que há de bom e no que há de ruim em uma catástrofe – show da capixaba Pé do Lixo pouco distraiu a turba de sua brincadeira abre-debulha-enrola-aperta-puxa; uma performance simultaneamente destruidora e patética, no mais das vezes ignorada pela maioria presente. Fora os (poucos) fãs de sempre, a exigência - de rompimento, ataque e subversão - não comportava nada que fosse menos ultrajante que a banda principal. E a sua entrada para a luz custou uma hora de intervalo a uma platéia que já tornara o pico uma experiência lisérgica exemplar. Anos 60/70 na boca da Rodovia do Sol.
Creeeeiiiiaaammmmm no que vos digo, creeeeeiiiaaaammmmmmmm!!!
Claro fica que toda essa tergiversação pode ser uma romanceada das boas de meu cérebro bombeado por um coração chapado. Mas algum clima, algum clima...
Tava deitado na grama quando ouvi a linha de baixo do Formigão. A parada era tão limpa que pensei na hora que neguinho tinha viajado e jogado um CD dos caras nas caixas antes do próprio show; uma pisada na bola, pensei. Porra nenhuma, o grupo já havia tomado posição e jogava pro alto o “Usuário” em um palquito mambembe, tosco, madeira encaixada na raça, luz fraquita e goiaba pra todos os lados. Poucas vezes vi um mosh tão violento, parceiros centrifugando e retornando com gosto, costelas amassadas e pés troncheados na maravilha que é um jogar dos corpos no caldeirão. Violência sônica de um som afiado por um palavreado político-maconheiro de primeira. Palhetas afiadas casadas emboladas nas baquetas parrudas do Bacalhau. D2 de repente no chão dividindo o fone de rádio com malucos dispostos e democraticamente ouvidos, pra logo depois invadirmos o palco nada cerimonioso mediante um convite do rapper e uma desistência providencial (para eles) da equipe de segurança. Eu e Mariquito, entre tantos, pulando abraçados lá de cima; o mesmo Mariquito tentando bebadamente discursar com o microfone em punho até ser interrompido por um D2 solícito e tranqüilo. Estavam todos em combustão espontânea.
Tudo finalizado com a embalagem luxuosa de um roadie travestido de Jimi Hendriz a solar solitário enquanto a banda deixava a bagaça e seguia em frente. Um Divino Negão cercado por dezenas que se acotovelavam despirocadamente. Apoteose apocalíptica pro mais violento espetáculo musical que já presenciei. Taí uma conjunção de fatores/forças difícil de ser batida. 20 de janeiro de 1996 na nossa mão e no nosso comando, sendo feito ali, sem misericórdia e sem amarras morais. Não sabíamos que nada daquilo se repetiria, pois as duras constantes que público e banda tomariam dali pra frente impediriam um novo show pelos próximos seis anos. É duro fazer a HISTÓRIA de um único dia. O sangue tá nas mãos e quase não corre pra cabeça.
Ainda hoje olho pra trás e vejo esse evento como um divisor de águas pessoal e coletivo, uma passagem por um túnel que nos permitiu dar mais um passo e outro e outro, um deixar/deitar na estrada uma parcela da dor e um bater de pernas desengonçado que nos trouxe pra cá, um certo limbo-vida-dimensão não compreensível fora de nossa ordem.
Um certo sangrar só nosso, indizível e intransmissível. Sangue do orgulho nas mãos.
"Depois de certa altura, a gente traz o cadáver do passado amarrado ao pé. Ou ao coração. É um cadáver muito sensível. Se o tocam, exala lembranças pelos poros."
Otto Lara Resende - 14/11/91, Rio de Janeiro
8 Comments:
fui nesse show!
faço minhas as palavras de paulinhop, texto foda!
abraço.
Quem esteve lá, esteve pra nunca mais. Dez mil vezes foda.
querido caio, gosto de te ler porque tudo o que você escreve tem tanta vida. e é meio contagiante. mesmo quando você se finge de pessimista. mesmo quando você se finge de nostálgico. mesmo quando você me dá uma baita bronca por eu comentar coisas que não têm a ver com o post. hehehehe. e depois me dar um abração no boteco.
só uma coisa: acho que nunca fiz 1% das doideras que vc fez na vida. olha que nunca fui exatamente certinha...
beijão.
Aaaaaaahhhhhhhhhh, Nati.... Teus comentários...
Fodaraços por demais.
E eu, bronca?
Hahahahahahahaha!!!!!
Paulim, e o concurso de baseados?? Hahahahahaha!!!
Brunim: conheço gente que ainda não saiu desse show, se é que vc me entende...
lembra da bronca que vc me deu? depois foi paixão à primeira vista. hahahahaha
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Hahahahahahahaha!!!!!
uahuahuahuahuahuahuhauahuaha.
caramba, esse show foi ducaraleo mesmo: jimi hendrix, reginaldo louco esquecendo a hora de subir ao palco, David ganhou o concurso de maior baseado, puta q pariu, que baseado era aquele!!!
uhauhauhauhauauhauh
com certeza tem gente que ainda ñ saiu de lá.
bom, meu cometário sobre o post tá lá no Escritório do Rock, hehehe
e o baseado que ganhou o "concurso" nesta ocasião descrita no post era do tamanho do da foto aí, MESMO!!!
E os caras num apertaram só p/ ganhar o tal "concurso" não, já estava manufaturado...
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