*HÁ UMA NAVE NO CÉU
“Nove de março de 2002, Rio de Janeiro, Praça da Apoteose. Não sei quanto a você, meu amigo, mas estarei lá, firme. Mais que afinidades musicais, movem-me as afinidades de sentimentos, paixão pura. Esquisito associar tal emoção a um subgênero, o progressivo, tão associado à frieza e ao distanciamento? Inorgânico, enfim? Não quando se trata de um sujeito capaz de juntar à melodias espetaculares versos como: “Quando era criança/olhei de relance/com o canto dos olhos/virei para olhar mas tinha sumido/agora fugiu do meu alcance/a criança se foi/o sonho se foi/eu fiquei confortavelmente entorpecido” (“Confortably numb”, “The Wall”, Pink Floyd, 1979).”
Ao escrever o texto que vos cito, poucos dias antes do evento em questão, não deixei de fazer as restrições (de praxe, diga-se) ao caminho solo do Roger Waters. E emendei: “Mas nada disso fará diferença quando aquele senhor de seus cinqüenta e tantos anos, cabelos muito grisalhos, circunspecto em seu porte inglês, pisar ali, no terreiro do samba global. Pelo menos não para aqueles que amaram, trabalharam, odiaram, suaram, transaram, batalharam, venceram e perderam, expostos e abrigados por “Mother”, “Shine on you crazy diamond”, “The great gig in the sky”, “Time”, “Goodbye blue sky”, “Wish you were here”, “Echoes”, “Breathe in the air”... Se há um coração batendo em teu peito, você estará lá. Saudações floydianas.”
Este, pois, era o retrato de minhas expectativas e ansiedades em relação ao show do homem que marcou, a ferro, fogo e lágrimas - muitas lágrimas - todas as adolescências que vivi. O homem de cuja cabeça saiu o álbum (e o filme) que marcaria a minha entrada, fórceps total, na bad trip adulta e todo o seu redemoinho de angústias, frustrações e nostalgia; o sujeito que melhor expôs o ridículo e o vazio em que o rock caíra, prostrado e indigente, ao fim de uma década de excessos masturbatórios. Percebes o drama, ô cara?
Dada essa relação rasgada, caminhei entre as arquibancadas do sambódromo com a convicção que, acontecesse o que acontecesse dali para a frente, Mr. Waters não me deixaria na mão. Afinal, sem essa fé a me conduzir, como enfrentar filas (de automóveis e de gente, gente mesmo), cerveja a quatro reais uma reles lata e adolescentes em ponto de combustão?
Para a felicidade de uma nação, a fé no Floyd de tantas e boas guerras levou-nos a um outro universo, estranhamente belo e perverso. O lado escuro, nada mais.
E às 21 e 15 daquele sábado, retirei mais um tijolo de meu muro.
Quando Roger Waters entrou no palco, embalado por sua excepcional banda - e está aí uma das grandes qualidades do homem, a de saber cercar-se de gente boa -, o jogo, ainda que em seu começo, já estava ganho. E não da maneira mais fácil, já que sua carreira não possui a marca das concessões. Ganho porque ficava claro que ali estava alguém que não só representava um marco roqueiro desde sempre como disto tinha plena consciência e, por tal motivo, tratava show e platéia com absoluto respeito, seguro de que dar o melhor de seu repertório não significava uma corrente a aprisioná-lo em algum lugar do tempo passado - e sim um reconhecimento público de sua importância e grandeza. Quantos músicos desse meio tão seviciado por “bandas de garotos” e “virgens da hora” podem olhar para a estrada que pavimentaram e sorrir, acariciando as cicatrizes? Podem contar nos dedos. De uma das mãos.
Sim, é verdade que parte dos trinta e cinco mil presentes ali estava somente pela possibilidade de conferir (ao vivo e em dezenas de cores) a lenda de que seus pais e/ou amigos mais velhos lhes havia falado, checar a veracidade de algumas histórias ou simplesmente poder bater no peito e dizer: “O cara do Pink Floyd? Eu estava lá, eu vi!” E daí? A eles foi dado mais, muito mais. Como um som que poucas vezes o Brasil alcançou , abraçando - sim, abraçando - todos os seus cantos. Como imagens projetadas em um telão no fundo do palco que, mais que apenas ilustrar as canções
são delas parte integrante. E pairando sobre tudo, absoluto, um patrimônio musical invejável.
Patrimônio este que teve as suas vísceras expostas e reviradas logo de saída, com a arrebatadora seqüência “In the flesh”, “The happiest days of our lives” (sintomática, não?) e, apoteótica e cantada/gritada pela massa, “Another brick in the wall, part 2” (“The Wall”). Pouco depois, em um crescendo de emoções díspares - um colega chegou a dizer que o que assistia/ouvia lhe causava, simultaneamente, euforia e depressão -, chegamos ao processo de dissecação do disco “Wish you were here” (PF, 1975), apresentado na totalidade e em sua ordem original, com a exceção (por quê?) de “Have a cigar”; aqui, parênteses para a execução - em duas partes não contínuas, como a conhecemos - mais que perfeita de “Shine on you crazy diamond”, marcada pela aparição no telão de seu inspirador Syd Barrett, de um close até a sua fragmentação, em um réquiem para o amigo recluso em sua própria insanidade. Nesse momento, companheiro, as pernas fraquejaram.
Curiosamente “Wish you were here”, a canção, foi menos climática do que se poderia imaginar. Milhares de vozes a tornaram menos, digamos, pungente. Acontece, acontece...
O intervalo de trinta minutos que se seguiu a este bloco, longe de ser brochante
permitiu-me a recuperação física, mental e emocional para um segundo ato mais introspectivo, em que o cantor/baixista apresentou canções de sua vida fora do monstro Pink, ouvidas em silêncio respeitoso, raro nessas ocasiões. Importante dizer que elas seguraram lindamente a peteca, balizando com dignidade e qualidade a tempestade clássica de músicas como “Time”, “Money”, “Brain Damage” (aqui, ainda mais fantasmagórica) e “Eclipse”, todas do mítico “The Dark side of the moon” (PF, 1973). Os latidos de “Dogs” (“Animals”, PF, 1977), uma das muitas canções-emblema do Pink Floyd arrepiaram o público, naturalmente mais contido nas músicas dos álbuns “A saucerful of secrets” (PF, 1968) e “The final cut” (PF, 1983), este o último com os quatro cavaleiros reunidos. Falhas? Bem, com a exceção do solo de sax de “Shine...” - que por problemas no PA só a própria banda deve ter ouvido -, nada, nada. Tudo correu redondo, límpido, denso. Nos anos setenta muita gente presente em shows desse nível deve ter procurado o seu “eu interior”...
Ah, e a “excepcional banda” (apoiada por três backing vocals de primeira, PP Arnold, Katie Kissoon e Linda Lewis)? Sua versatilidade permitiu que por vezes tivéssemos no palco guitarras e baixos dobrados, com Waters soberanamente dividindo-se entre o seu baixo de coração e o violão, passeando pelo palco com um expressivo sorriso. A grande questão - obviamente - dizia respeito aos guitarristas: dariam conta do recado, trabalhando sobre a obra fantástica de Gilmour? Snowy White (mais que Chester Kamen), emulando o guitarrista original do Floyd, manteve a integridade do cargo. Aliás, merece aplausos a preservação dos arranjos originais de todas as músicas do quarteto. Como os sujeitos nunca deram as caras por aqui foi justo, muito justo.
Destaque ainda para uma grande tirada de Waters (em que ficou patente o seu típico sarcasmo), quando o grupo - durante uma passagem solo de seu tecladista Harry Waters, cria do sujeito - sentou-se em redor de uma mesa no centro do palco a jogar cartas displicentemente, como a dizer: “Sejamos honestos. Não temos nada a fazer agora. Portanto, vamos deixar isso claro e relaxar.” Gênios, definitivamente, são estruturados a partir de detalhes.
Ufa!
A sensação ao final de três horas de prazer e catarse era de dever cumprido. Fui, vi e vivi tudo o que quis. Já posso dormir (um pouco mais) tranqüilo, descrever a experiência em meus cadernos e dizer que o cara realmente existe. E está aí, íntegro, na ativa.
*Texto que escrevi - naquele ano - por encomenda de uma revista.
“Nove de março de 2002, Rio de Janeiro, Praça da Apoteose. Não sei quanto a você, meu amigo, mas estarei lá, firme. Mais que afinidades musicais, movem-me as afinidades de sentimentos, paixão pura. Esquisito associar tal emoção a um subgênero, o progressivo, tão associado à frieza e ao distanciamento? Inorgânico, enfim? Não quando se trata de um sujeito capaz de juntar à melodias espetaculares versos como: “Quando era criança/olhei de relance/com o canto dos olhos/virei para olhar mas tinha sumido/agora fugiu do meu alcance/a criança se foi/o sonho se foi/eu fiquei confortavelmente entorpecido” (“Confortably numb”, “The Wall”, Pink Floyd, 1979).”
Ao escrever o texto que vos cito, poucos dias antes do evento em questão, não deixei de fazer as restrições (de praxe, diga-se) ao caminho solo do Roger Waters. E emendei: “Mas nada disso fará diferença quando aquele senhor de seus cinqüenta e tantos anos, cabelos muito grisalhos, circunspecto em seu porte inglês, pisar ali, no terreiro do samba global. Pelo menos não para aqueles que amaram, trabalharam, odiaram, suaram, transaram, batalharam, venceram e perderam, expostos e abrigados por “Mother”, “Shine on you crazy diamond”, “The great gig in the sky”, “Time”, “Goodbye blue sky”, “Wish you were here”, “Echoes”, “Breathe in the air”... Se há um coração batendo em teu peito, você estará lá. Saudações floydianas.”
Este, pois, era o retrato de minhas expectativas e ansiedades em relação ao show do homem que marcou, a ferro, fogo e lágrimas - muitas lágrimas - todas as adolescências que vivi. O homem de cuja cabeça saiu o álbum (e o filme) que marcaria a minha entrada, fórceps total, na bad trip adulta e todo o seu redemoinho de angústias, frustrações e nostalgia; o sujeito que melhor expôs o ridículo e o vazio em que o rock caíra, prostrado e indigente, ao fim de uma década de excessos masturbatórios. Percebes o drama, ô cara?
Dada essa relação rasgada, caminhei entre as arquibancadas do sambódromo com a convicção que, acontecesse o que acontecesse dali para a frente, Mr. Waters não me deixaria na mão. Afinal, sem essa fé a me conduzir, como enfrentar filas (de automóveis e de gente, gente mesmo), cerveja a quatro reais uma reles lata e adolescentes em ponto de combustão?
Para a felicidade de uma nação, a fé no Floyd de tantas e boas guerras levou-nos a um outro universo, estranhamente belo e perverso. O lado escuro, nada mais.
E às 21 e 15 daquele sábado, retirei mais um tijolo de meu muro.
Quando Roger Waters entrou no palco, embalado por sua excepcional banda - e está aí uma das grandes qualidades do homem, a de saber cercar-se de gente boa -, o jogo, ainda que em seu começo, já estava ganho. E não da maneira mais fácil, já que sua carreira não possui a marca das concessões. Ganho porque ficava claro que ali estava alguém que não só representava um marco roqueiro desde sempre como disto tinha plena consciência e, por tal motivo, tratava show e platéia com absoluto respeito, seguro de que dar o melhor de seu repertório não significava uma corrente a aprisioná-lo em algum lugar do tempo passado - e sim um reconhecimento público de sua importância e grandeza. Quantos músicos desse meio tão seviciado por “bandas de garotos” e “virgens da hora” podem olhar para a estrada que pavimentaram e sorrir, acariciando as cicatrizes? Podem contar nos dedos. De uma das mãos.
Sim, é verdade que parte dos trinta e cinco mil presentes ali estava somente pela possibilidade de conferir (ao vivo e em dezenas de cores) a lenda de que seus pais e/ou amigos mais velhos lhes havia falado, checar a veracidade de algumas histórias ou simplesmente poder bater no peito e dizer: “O cara do Pink Floyd? Eu estava lá, eu vi!” E daí? A eles foi dado mais, muito mais. Como um som que poucas vezes o Brasil alcançou , abraçando - sim, abraçando - todos os seus cantos. Como imagens projetadas em um telão no fundo do palco que, mais que apenas ilustrar as canções
são delas parte integrante. E pairando sobre tudo, absoluto, um patrimônio musical invejável.
Patrimônio este que teve as suas vísceras expostas e reviradas logo de saída, com a arrebatadora seqüência “In the flesh”, “The happiest days of our lives” (sintomática, não?) e, apoteótica e cantada/gritada pela massa, “Another brick in the wall, part 2” (“The Wall”). Pouco depois, em um crescendo de emoções díspares - um colega chegou a dizer que o que assistia/ouvia lhe causava, simultaneamente, euforia e depressão -, chegamos ao processo de dissecação do disco “Wish you were here” (PF, 1975), apresentado na totalidade e em sua ordem original, com a exceção (por quê?) de “Have a cigar”; aqui, parênteses para a execução - em duas partes não contínuas, como a conhecemos - mais que perfeita de “Shine on you crazy diamond”, marcada pela aparição no telão de seu inspirador Syd Barrett, de um close até a sua fragmentação, em um réquiem para o amigo recluso em sua própria insanidade. Nesse momento, companheiro, as pernas fraquejaram.
Curiosamente “Wish you were here”, a canção, foi menos climática do que se poderia imaginar. Milhares de vozes a tornaram menos, digamos, pungente. Acontece, acontece...
O intervalo de trinta minutos que se seguiu a este bloco, longe de ser brochante
permitiu-me a recuperação física, mental e emocional para um segundo ato mais introspectivo, em que o cantor/baixista apresentou canções de sua vida fora do monstro Pink, ouvidas em silêncio respeitoso, raro nessas ocasiões. Importante dizer que elas seguraram lindamente a peteca, balizando com dignidade e qualidade a tempestade clássica de músicas como “Time”, “Money”, “Brain Damage” (aqui, ainda mais fantasmagórica) e “Eclipse”, todas do mítico “The Dark side of the moon” (PF, 1973). Os latidos de “Dogs” (“Animals”, PF, 1977), uma das muitas canções-emblema do Pink Floyd arrepiaram o público, naturalmente mais contido nas músicas dos álbuns “A saucerful of secrets” (PF, 1968) e “The final cut” (PF, 1983), este o último com os quatro cavaleiros reunidos. Falhas? Bem, com a exceção do solo de sax de “Shine...” - que por problemas no PA só a própria banda deve ter ouvido -, nada, nada. Tudo correu redondo, límpido, denso. Nos anos setenta muita gente presente em shows desse nível deve ter procurado o seu “eu interior”...
Ah, e a “excepcional banda” (apoiada por três backing vocals de primeira, PP Arnold, Katie Kissoon e Linda Lewis)? Sua versatilidade permitiu que por vezes tivéssemos no palco guitarras e baixos dobrados, com Waters soberanamente dividindo-se entre o seu baixo de coração e o violão, passeando pelo palco com um expressivo sorriso. A grande questão - obviamente - dizia respeito aos guitarristas: dariam conta do recado, trabalhando sobre a obra fantástica de Gilmour? Snowy White (mais que Chester Kamen), emulando o guitarrista original do Floyd, manteve a integridade do cargo. Aliás, merece aplausos a preservação dos arranjos originais de todas as músicas do quarteto. Como os sujeitos nunca deram as caras por aqui foi justo, muito justo.
Destaque ainda para uma grande tirada de Waters (em que ficou patente o seu típico sarcasmo), quando o grupo - durante uma passagem solo de seu tecladista Harry Waters, cria do sujeito - sentou-se em redor de uma mesa no centro do palco a jogar cartas displicentemente, como a dizer: “Sejamos honestos. Não temos nada a fazer agora. Portanto, vamos deixar isso claro e relaxar.” Gênios, definitivamente, são estruturados a partir de detalhes.
Ufa!
A sensação ao final de três horas de prazer e catarse era de dever cumprido. Fui, vi e vivi tudo o que quis. Já posso dormir (um pouco mais) tranqüilo, descrever a experiência em meus cadernos e dizer que o cara realmente existe. E está aí, íntegro, na ativa.
*Texto que escrevi - naquele ano - por encomenda de uma revista.
2 Comments:
o lê o lê o lê o lê... roger waters...
eu estava lá!!!
belo texto. parabéns.
onde eu tenho que assinar?
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